Efeito Coelho

A imagem foca um corredor pouco iluminado, provavelmente nos bastidores dum qualquer pavilhão. No entanto, o vídeo é inevitavelmente predominado pelos cânticos eufóricos duma multidão ao longe. Conforme os segundos vão passando, os cânticos vão-se tornando cada vez mais perceptíveis. A multidão grita "Thank you Gante".

Então Jorge Gante, em equipamento de combate, surge na imagem segurando uma toalha branca com a qual limpa o sangue que escorre desde a sua testa até ao peito. A sua respiração ofegante revela a exaustão do final de mais um combate violento.

Jorge Gante (focando a câmera intensamente): Este é o som que se ouve quando percebes que, em algum momento ou em algum lugar, te tornaste imortal.

The Mirror - como ficou conhecido nos Estados Unidos - sorri brevemente, voltando no entanto pouco depois a expressar o mesmo olhar intenso de antes.

Jorge Gante (passando a toalha novamente pelo peito, limpando restos de sangue): Vamos dispensar apresentações ocas e clichés. Há nove meses abandonei Portugal e abandonei o wrestling português. Viajei para os Estados Unidos para combater os meus monstros...

Nesse momento, aponta para a sua própria cabeça com algum desprezo.

Jorge Gante: Dizem que a América é a terra que tudo possui em formato gigante. Desde hambúrgueres a coca-colas, desde sonhos a pesadelos, desde monstros a homens. Eu digo que precisava de viver tudo isso, precisava de certa forma sair da minha zona de desconforto e viver uma realidade muito maior do que eu para perceber...

O ex-UWL Undisputed Champion faz um gesto a pedir um cigarro a alguém que não é visível no vídeo e vê-se prontamente um braço a oferecer um cigarro e um isqueiro a Gante.

O português volta a focar a câmara, conforme coloca o cigarro na boca e o acende em puro relaxamento.

Jorge Gante: Há duas semanas ligaram-me e convidaram-me para combater num evento único do wrestling português, o Regresso da FPW. E eu, sem pensar duas vezes, respondi: tudo bem, deixem-me só terminar o contrato com a NY Brawl e depois viajo para Portugal. Pois bem, o meu contrato acaba hoje, hoje foi o meu último combate em solo americano.

Leva o cigarro à boca e dá mais uma passa, pousando por fim a toalha ensanguentada no seu ombro direito.

Jorge Gante: O ponto fulcral disto tudo é que até há uns dias eu vinha andando a questionar-me sobre a verdadeira razão pela qual me comprometi assim a regressar ao wrestling português. Pelo dinheiro? Não, recebo tanto em apenas um combate em solo americano como receberia a lutar um mês como um escravo em Portugal.

Mais uma passa, esta mais demorada e saboreada.

Jorge Gante: Então vi que para além de mim haviam já dois velhos conhecidos meus confirmados para o evento e percebi realmente a razão de ter vindo há nove meses para os Estados Unidos e aceitar agora regressar a Portugal.

O mestre d'A Purga volta a sorrir, agora com um esgar bem sarcástico.

Jorge Gante: Primeiro, o Cavaleiro que há uns dias teve a ideia genial, confesso, de pintar a cara e vir-se lamentar sobre o quão injustiçado é por Portugal o ter esquecido e exigir vingança como um direito inegavelmente seu. Um homem com uma carreira irrelevante que atingiu o seu auge em dois momentos apenas: quando vendeu a sua dignidade ao patrão e quando apareceu em todos os noticiários nacionais por alegadamente espancar a namorada. Um homem inteligente e coerente, portanto.

O sorriso é substituído por gargalhadas sentidas.

Jorge Gante: Se isto é genial, mais genial é este seu novo discurso pseudo-poético que adoptou, forçado de uma forma tão pouco subtil que cai no ridículo, o que me leva a acreditar que andou nos últimos tempos a tirar um curso intensivo de escrita criativa com o Chagas Freitas, única e exclusivamente para encontrar uma forma da sua personagem - sim, personagem - parecer interessante e relevante. Como podem ver não anda a obter muitos resultados, mas...

Antes de prosseguir, dá mais uma passa no cigarro livrando-se dele de seguida, atirando-o para o chão.

Jorge Gante: O Cavaleiro como homem inteligente que é recorreu à derradeira fórmula milagrosa de se ter sucesso: acreditar que ninguém se lembra que ele já combateu no passado e anunciar o seu debut tentando fazer assim do seu possível combate um acontecimento especial, quando minutos antes se anuncia como um ex-Campeão da VLL, título esse que não tem qualquer valor nem nunca teve, diga-se de passagem, que até já nem me recordo do nome do miúdo a quem o Cavaleiro o roubou.

Mais uma pausa do português, que apresenta agora um ar mais sarcástico do que nunca.

Jorge Gante: O segundo homem anunciado foi um tipo que ganhou o prémio de Cómico do Ano em tempos, prémio esse que não voltará a ganhar porque agora tem a concorrência do... Blhac.

Durante alguns segundos revela um ar presunçoso, visivelmente orgulhoso da sua piada. Depois, o olhar sério e intenso do início retornam ao seu rosto.

Jorge Gante (apontando para a câmara, sério): Mas chega de piadas fáceis como o Cavaleiro. Este homem, Henrique Coelho, está longe de ser uma piada.

The Mirror baixa a mão e acena a cabeça positivamente, em sinal de respeito.

Jorge Gante: Este homem venceu-me há nove meses pelo título que representa a unificação das maiores federações que o wrestling português alguma vez viu; federações como a VWW, a TWZ, a EWL. Este homem é neste momento o detentor do título maior da história do wrestling português. Este homem é o UWL Undisputed Champion.

Passa a mão pelo rosto algumas vezes, como que penteando a barba pintada de sangue seco.

Jorge Gante: É verdade, este homem venceu-me por um título que eu não desejava mais, duma federação à qual eu não queria mais pertencer. Mas isso não desvaloriza em nada a vitória que ele obteu sobre mim. Foi ele que me fez abandonar Portugal e rumar aos Estados Unidos.

Jorge Gante baixa o rosto algo pensativo durante momentos, antes de o erguer novamente.

Jorge Gante: Durante anos acreditei numa mudança do wrestling português e lutei por ela. Mas, assim que cheguei aos Estados Unidos, apercebi-me do quão a minha luta esteve errada este tempo todo. Não é o wrestling português que precisa de mudar... O wrestling é igual em todo o lado. As pessoas pagam para te ver a deixares o corpo - seja morto ou vivo - no ringue, ponto.

Mais uma pausa, respirando fundo.

Jorge Gante: O que precisa de mudar realmente são as pessoas que o controlam, que se aproveitam dele. É contra essas pessoas a minha luta, não contra o wrestling português. É contra pessoas como o Cavaleiro que se estão literalmente a cagar se deixam a alma no ringue e tudo o que procuram no wrestling é reconhecimento e afirmação de tão inseguros e medíocres que são. É contra pessoas como tu, Henrique...

O ex-Verno aproxima-se da câmara até que apenas o seu rosto a transpirar intensidade se torna visível na imagem.

Jorge Gante: O Efeito Borboleta diz-nos que o bater das asas de uma mera borboleta pode provocar um tufão do outro lado do mundo, Henrique... E eu acredito que tu ao longo destes últimos meses provaste ser capaz de criar um outro efeito...

Abre os olhos estimulando o suspense, antes da revelação.

Jorge Gante: O Efeito Coelho, que nos diz que quando o Henrique Coelho se torna importante, o wrestling português morre... Não foi assim, Henrique?!

Gante eleva progressivamente o seu tom voz, notando-se um misto de mágoa e fúria nas suas palavras.

Jorge Gante: Alguma vez na tua put* de vida açoriana chegaste a defender esse título depois de o conquistares?, esse que é o maior ouro da história do wrestling português?! Ou preferiste ficar quase um ano sentado na tua cadeira de palha em São Miguel a gabares-te para as tuas vacas e para os teus brassads o enorme campeão que eras enquanto o wrestling português se afundava no esquecimento contigo?! Quando a verdade, Henrique...

O ex-UWL Undisputed Champion respira fundo, acalmando-se, e o seu tom de voz volta a estabilizar.

Jorge Gante: É que tu nunca foste um verdadeiro campeão... Porque até na noite em que me derrotaste por esse mesmo título, o único nome pelo qual a multidão gritava era...

Mais uma pausa.

Jorge Gante (quase sussurrando): ... Jorge Gante.

A imagem começa a desvanecer.

Jorge Gante (ouvindo-se ainda ao longe): Tu sabes o que tens a fazer. Precisas de mim.