Lucas Iscariotes

por **DiogoAz** Sex Set 10 2010, 22:13

???: Desculpe, pode repetir o seu apelido, por favor?

Uma questão a que não podia dizer que não estava habituado. Aliás, desde o primeiro dia que ali entrara que ouve, com menos ou mais frequência, o mesmo inquérito, repetidamente.

É de estranhar que uma recepcionista não tenha memória visual para destacar, no meio das centenas de desesperados desconhecidos que ali passam, um rapaz na casa dos vinte anos, mas cujo aspecto degradado lhe coloca sobre os ombros mais uns trinta. Mas também com a frequência que alternam os seus funcionários, num tão curto espaço de meses, dificulta a tarefa. Parece que nem trabalhando num centro de emprego se está seguro.

??? (com um semblante carregado): Iscariotes, Lucas Iscariotes. – cerrando os olhos e passando a mão pelos cabelos oleosos.

Recepcionista (focada no ecrã do seu computador): Espere só um pouco.

Quem até então esperou três horas numa fila interminável, não se incomodaria a aguardar mais uns minutos. Contudo, a paciência não era um atributo que tivesse incutido no sangue de Iscariotes.

Talvez, em tempos, mas depois de tantos séculos de perseguição, quer pelos monges do alto clero da Idade Média, obcecados em comprovar e expulsar os “filhos de Judas” da casa de Deus; quer pelos republicanos, nos princípios do século passado, quando acusados de conspirarem contra Manuel Arriaga; a paciência há muito que não estava enraizada na família de Lucas.

Recepcionista (com voz robótica): Sabe que com o seu curriculum, dia após dia se torna mais complicado aparecerem propostas.

Lucas, como seria de prever pela sua árvore geneológica, era também um homem com um grande espírito revolucionário e de enorme ambição, mas que ficava muito a desejar quando de lealdade se dizia respeito. Curioso aspecto tendo em conta o seu apelido.

Talvez por isso a dificuldade de se manter num emprego, durante um período aceitável de tempo. Mais tarde ou mais cedo, uma pequena falcatrua ia desvanecer a confiança do seu patrão.

Lucas Iscariotes (desinteressado): Percebo... – enquanto fitava o relógio de parede que marcava 17h30.

Recepcionista: Contudo, temos aqui algo que lhe poderá interessar. Vou mandar imprimir e peço-lhe que abadone a fila para dar a vez – levantando-se e dirigindo-se para a impressora.

Iscariotes não esbuçou reacção. Devia ser mais uma proposta para empregado de mesa num restaurante imundo ou como recepcionista num motel para maridos pouco ou nada devotos.

A mulher de aspecto frágil passou-lhe as folhas com os detalhes de tudo o que ele necessitava de saber, deixando embutido na borda das folhas uma marca dos seus dedos transpirados. Era mais um dia que passava sem ter almoçado.

Lucas pegou no portfólio improvisado e saiu daquele lugar sem se quer mirar o mesmo. O que mais queria era sair daquele sítio sufocante, que se enchia de gente impura e perturbada a cada minuto.

Já cá fora, e depois de ter sido incadeado pelo forte sol que vigiava aquele final de mês de Agosto, tapou o mesmo com a sua mão esquerda enquanto que olhava com desprezo para o que tinha nas mãos. O título surpreendeu-o de imediato:

“Tryout de wrestlers para show pilot da recém criada Federação de Pro-Wrestling”

Iscariotes levou a mão às suas farfalhudas e compridas barbas, que há mais de três meses se encontravam por fazer. Odiava barbear-se pois achava que aqueles pêlos faciais contam uma história de uma vida e que um verdadeiro homem devia exibi-los com orgulho.

Apesar do choque inicial da oferta, depois de ter racionalizado tudo, viu que não era nada completamente surpreendente e inapropriado. Havia colocado no seu curriculum os vários anos que praticou luta greco-romana, durante a sua adolescência, numa das melhores e mais caras escolas do país, e no liceu de Sintra, até perto dos seus 20 anos.

Felizmente vinha duma família de grande posses, principalmente do seu lado paterno, que lhe financiaram a universidade e o curso de medicina, que nunca chegara a concluir. Era um aluno brilhante mas demasiado conflituoso. Andou de escola em escola, expulso por comportamento e atitudes incorrectas, tendo sido aconselhado pelos psicológos a praticar um desporto físico onde pudesse descarregar toda essa raiva. Daí todo o seu background em luta greco-romana.

Lucas Iscariotes (pensando para si próprio): Será que ainda tenho capacidades para o fazer? – reparou no seu reflexo num vidro de um carro e suspirou – Ahhhh, como pareces acabado. Ninguém te daria menos oito anos do que a conta que Ele fez. Conheço-te melhor que ninguém maldito Iscariotes, conheço-te melhor que ninguém...

Tinha perdido grande parte da sua massa muscular nos últimos tempos. Agora parecia um sem-abrigo faminto, de aspecto muito pouco cuidado, onde apenas aquele velho smoking, que levava para todo o sítio, lhe dava um tímido encanto e classe.

Virou o seu carregado e pesado olhar para a sua direita e viu uma esbelta mulher, executiva talvez, empurrando vários cadernos de apontamentos e fichas soltas contra os seus redondos peitos que enchiam a semi-aberta camisa branca. As suas extremamente justas calças negras realçavam-lhe as suas perfeitas curvas e faziam um conjunto completo de tentação.

Falava ao telemóvel, bastante sorridente, segurando o aparato com o auxílio do seu ombro direito. Estava numa verdadeira prova de equlibrismo, entre folhas, celulares e ainda com os óculos-de-sol que lutavam para se manterem no topo dos seus longos cabelos cor de avelã.

Lucas Iscariotes (lançando um sorriso atrevido): Mas afinal o fruto proibído é sempre o mais apetecível. Barramás mereceu uma segunda oportunidade. Porque não mereceria eu?

Caminhou triunfalmente na direcção da jovem rapariga, passando de raspão junto da mesma. De tal maneira perto que conseguiu sentir o cheiro do seu perfume, demasiado infantil para uma mulher como aquela, mas que lhe dava uma inocência de criança.

Depois de ter caminhado uns bons metros daquela longa avenida, olhou misteriosamente em frente, novamente com um sorriso estampado no fino rosto, desta vez não atrevido, mas sim matreiro e irreverente.

Lucas Iscariotes (sussurando para si mesmo): Vamos lá comprar umas roupas novas que eu estou a merecer – retirando a sua mão esquerda do bolso, que colada a si trazia uma carteira de mulher.